Por Henrique Kugler
“Eu mesmo já levei um tiro nas costas”, contou-me Eugene, um taxista de Belfast. “E, certa vez, tive de segurar em meus braços um rapaz que, passando a poucos metros de mim, foi atingido por uma bala perdida”. Eugene é um dos taxistas que integram o famoso circuito dos Black Cab Tours, um dos passeios mais icônicos que se pode fazer em Belfast, capital da Irlanda do Norte.
É uma imersão radical na história recente do ignominioso conflito que, entre as décadas de 1960 e 1990, dividiu católicos e protestantes. Naquele período, aliás, a cidade ficou conhecida como “capital europeia do terrorismo”. Escrevi sobre o conflito entre católicos e protestantes para tentar explicar as origens de tanto ódio e segregação.
Mas, agora, voltemos a falar dos famosos Black Cab Tours. Trata-se de um rolê pelos principais pontos históricos da cidade, em especial aqueles que tem relação com os episódios mais violentos do conflito norte-irlandês.
O trajeto é variável e flexível – inclui normalmente os Political Murals; a Peaceline; a Crumlin Road Jail; e a Court House, para citar algumas das principais atrações. Durante o passeio, o taxista narra, à sua maneira, as instigantes histórias que fizeram de Belfast uma das cidades mais perigosas do mundo até não muito tempo atrás.
O mais intrigante é que, a depender de seu taxista – isto é, se ele for protestante ou católico – a história narrada poderá ser diferente! Eugene, o taxista com quem fiz o passeio, é católico. E, para ele, os protestantes eram quase que uma espécie de sanguinários natos, um grupo perverso e intolerante composto por assassinos sectários e contumazes.
“Se você morar em um bairro protestante e seguir qualquer outra religião, eles não vão lhe aceitar na comunidade”, disse-me Eugene. “Caso seu vizinho seja protestante, você não terá paz.”
Acontece que, dias depois, conheci um viajante que fizera o mesmo passeio com um taxista protestante. E a história, por incrível que pareça, foi narrada da maneira contrária! Segundo esse outro sujeito, eram os católicos os antagonistas intransigentes e sanguinários.
Fiquei com a pulga atrás da orelha. Mas, bah, que saber? É muito provável que os dois taxistas estejam certos. Ou, numa outra interpretação, é provável que ambos estejam errados… Lembrei-me do que disse certa vez Joy, uma amiga irlandesa. Segundo ela, “os dois lados cometeram terríveis atrocidades e são igualmente deploráveis”.
A divergência entre as visões de mundo dos taxistas pode parecer um tanto confusa, é verdade. Mas, pensando bem, isso é também um grande barato. Pois, afinal, essa experiência turística acaba por refletir parte da realidade da sociedade irlandesa contemporânea: a de uma nação segregada que ainda se cura das cicatrizes provocadas pelos conflitos traumáticos de sua história recente.
Por essas e outras, os Black Cab Tours – se deres a sorte de pegar um bom motorista – parecem ser muito mais que um roteiro turístico brega. É uma expressão autêntica da história ainda em progresso. É uma desconcertante imersão na cultura local. E também uma inesquecível aula sobre os acontecimentos pretéritos – não pelas empoeiradas páginas de um livro velho, tampouco pelas reluzentes vitrines de um moderno museu, mas pela memória viva daqueles que de fato os vivenciaram.
Black Cab Tours: dica de empresa
Uma das boas empresas que oferecem esse passeio é a Paddy Campbell’s. O taxista que me conduziu foi Eugene – quem eu posso com certeza recomendar. Além de gente fina, ele tem um modo peculiar de narrar suas comoventes histórias. Para agendar, basta telefonar para o número +44 (0) 79.90.95.52.27.
É interessante saber que esse programa pode ser feito a praticamente qualquer hora, da manhã até tarde da noite. Custa £30 e cada táxi pode levar, em geral, até 3 passageiros. Isso significa que, rachando os custos, cada um acaba por pagar apenas £10.
Dura cerca de duas horas e, ao final, o taxista deixa o viajante em qualquer local da cidade. A propósito, antes do início do passeio ele também pode te pegar em qualquer lugar de sua preferência, assim como qualquer táxi comum o faria. Muito conveniente.