Por Daniel Marinho
O restaurante no terraço panorâmico de um hotel qualquer de Sultanahmet – região mais antiga da cidade, erguida à época em que Istambul ainda atendia por Constantinopla – estava vazio. Vazio, acolhia a maresia do Mediterrâneo, espremida nos 32km do Estreito de Bósforo; bem ali, diante dos olhos e sob o pôr do sol, escorando a Europa e a Ásia, cada qual em um lado da margem.
Não é pouca a importância histórica desse lugar, inclusive para nós brasileiros. Foi às margens do Bósforo que, em 1453, a Terra assistiu a tomada da então capital do Império Romano do Oriente pelos turco-otomanos. A Queda de Constantinopla derrubava a última porta dos mercadores europeus ao Oriente e, junto a ela, toda a Idade Média. Com o Mediterrâneo Oriental dominado pelo Islã, os europeus teriam de buscar rotas marítimas alternativas para alcançar as especiarias indianas. De plana, a Terra passaria a redonda, e o resto é história.
História, aliás, em Istambul é commodities. Ainda que enamorado pelo ravióli turco à mesa – uma massa recheada de carne de carneiro, banhada em iogurte e muita pimenta anatoliana – é a indiferença dos restos da Muralha de Constantinopla que me toma a atenção. Construída ao longo dos séculos 4 e 5, blocos pesados de calcário moldaram uma parede interna de estrutura sólida de 5 m de espessura e 12 m de altura, que abraçaram a cidade por inteira por mais de mil anos. Em grande parte, devo a essa fortaleza de pedra a composição que daqui de cima se espalha entre kebabs, rakis e doces de pistache.
Como a Hagia Sophia com sua cúpula gigantesca, epítome da arquitetura bizantina. Erguida por Justiniano em 537, fora a maior catedral cristã do mundo ao longo do primeiro milênio. Convertida em mesquita pelo sultanato no século 15, hoje é um “templo-sincrético”, cujas paredes internas ostentam antigas pinturas de Maomé, ao lado de imagens de Jesus Cristo, descascadas pela tolerância religiosa do tempo e pela maturidade dos povos.
Como a vista dos seis minaretes da Mesquita Azul que resistiram incólumes a terremotos, ao fervor da pólvora, ao calor do fogo e à fúria dos canhões desde sua construção, por ordem do Sultão Ahmet I, até hoje. Ou o megalomaníaco Palácio Topkapi, que se esparrama em ostentação na colina à frente. É lá que, até poucos séculos atrás, o Sultão Otomano levava a vida dura que lhe deu fama, com centenas de concubinas particulares. “Inquilinas” de um harém que até hoje ergue-se orgulhoso de pé, aberto aos visitantes. Naturalmente, sem as moças de outrora.
Com goles de um vinho da Capadócia e o fumo de pêssego adocicado de um narguilé turco, essa urbes arqueológica fica ainda mais inusitada; desajuizada pelo despertar sensorial e perspectivas induzidas pelo álcool, que aqui, ao contrário de outros países muçulmanos, é hábito liberado e faustosamente praticado.
Fundada há exatos 2681 anos, Istambul já foi Bizâncio, Constantinopla e Nova Roma. Já foi pagã, cristã e muçulmana. Já foi persa, grega, romana e otomana. Hoje é turca. E laica. São 13 milhões de habitantes na única cidade do mundo com os pés em dois continentes. Na prática, o verdadeiro Meridiano de Greenwich. A interseção e fronteira de dois mundos diversos – politicamente, socialmente e filosoficamente; nos modos de ver, entender, crer e assimilar a vida: o Ocidente e o Oriente.
Mas já é noite. Um grupo de mulheres de burca negra caminha em direção ao hotel. Certamente são turistas provenientes de algum país islâmico mais linha dura. Um vozerio soturno árabe começa a espalhar-se por toda a cidade. Ressoa em cada beco. Sinto um misto de estranheza e medo. Com o ouvido já “educado” pelos telejornais, associo inconscientemente a algum noticiário tenso do Oriente Médio. As vozes, porém, saem dos alto-falantes distribuídos por Sultanahmet para chamar os muçulmanos à oração. Nada mais. É a quinta e última reza do dia.
Do outro lado de meu preconceito ocidental, luzes ofuscam os modernos arranha-céus de uma cidade já muito bem iluminada. Turcas de vestidinho colorido, produzidas para a night, uma das mais agitadas entre as metrópoles europeias, sacam dinheiro num caixa eletrônico no meio da rua. Não há policiais a essa hora, mas todos na fila estão à vontade, inclusive duas senhoras de idade. Há uma turma de estudantes de cerveja na mão. Um deles, de bermuda estampada e sandália havaiana, brinca com as crianças ao lado de um mostruário dourado de badulaques da região.
Istambul não é Ocidente nem Oriente. É um entreposto singular desses dois mundos tão diversos. É onde os extremos dessa dicotomia se encontram, em meio à diversidade de povos, sabores, hábitos, credos, medos, luxúrias, desejos e crenças. Tudo isso em meio a vistas suntuosas e muita pimenta no prato.