Talvez a tarefa mais prazerosa da atividade de um travel writer seja a vivência gastronômica, como também deveria ser para o viajante. Comer bem, num lugar agradável, faz parte de uma boa viagem e é importante que o turista – o clássico, o descolado e até o mochileiro – possa se permitir (ao menos em alguns momentos) esse investimento.
Por Zizo Asnis
Existe o comer como parte da subsistência do ser humano, a necessidade da alimentação para se manter saudável – e isso eventualmente pode ser feito de forma menos pretensiosa, tipo qualquer coisa em qualquer lugar a qualquer hora quando a fome bater.
E existe o comer como parte da subsistência do ser viajante, o ritual que entende a gastronomia como elemento cultural e como programa indissolúvel a aproveitar uma viagem por um país ou uma cidade diferente da nossa.
Como ritual, deve preferencialmente incluir entrada, prato principal e sobremesa, cada um no seu tempo.
A companhia também é importante: a companhia de um bom cálice de vinho (ou cerveja, a quem preferir).
Achou que fosse outra companhia?? rs… Ah sim, amigos, namorados, familiares, amantes também valem, assim como bem acompanhado de você mesmo. Não importa.
O que importa é se permitir aproveitar a comida local e, consequentemente, a sua viagem pelo ponto de vista gastronômico.
Sou travel writer por período integral da vida – sempre escrevendo para os Guias O Viajante (e a partir de agora, e-books, e em breve aplicativos) –, mas sou um blogueiro sazonal, quando me vejo, por circunstâncias tão interessantes, obrigado a compartilhar boas histórias ou divertidas experiências. Como é o caso agora, em Londres.
Experimentar os restaurantes na capital britânica a fim de resenhar para nossos próximos guias – um crítico gastronômico francês do século passado iria preferir a morte por guilhotina do que esse trabalho. Aliás, considero como parte da minha missão desmistificar esse papo mais do que atrasado de que na Inglaterra não se come bem. Posso garantir que Londres, ao menos, não fica nada atrás de Paris, Roma – capitais de países conhecidos pelo buon mangiare – ou São Paulo.
Como não sou crítico gastronômico, mas travel writer, escrevo não apenas sobre a comida, mas sobre todo esse árduo trabalho que, na manhã seguinte ao jantar, me obriga a nadar 2.500 metros.
Acompanha aí! (Ou, se estiver com preguiça de ler, porque vem textão aí onde eu conto e mostro tudo, veja a versão reduzida, em 8 fotos, no meu Instagram: @zizoviajante).
Aqua Shard – um restaurante no maior edifício da Europa Ocidental
Da entrada, aliás de muitos lugares de Londres (incluindo a janela do meu quarto), é possível avistar o longo formato piramidal do The Shard, prédio revestido de vidro com 310 metros de altura, o equivalente a 95 andares.
A entrada propriamente se divide de acordo para onde você pretende ir. No térreo, se vai aos escritórios, que ocupam a maior parte do edifício. No subsolo, nível da estação de metrô, à esquerda é a entrada para quem pretende subir até (quase) o topo, rumo ao 72º andar; à direita, para o hotel, Shangri-La, e os restaurantes, Oblix e Aqua Shard. Este segundo é o meu destino, para onde um elevador exclusivo me leva sem escalas, direto até o 32º andar (o restaurante fica alguns degraus mais abaixo).
Na porta do restaurante, tenho minha reserva confirmada (corre-se o risco de não entrar sem reserva) e sou levado à minha mesa, atravessando um grande salão numa ambientação clean e moderna que dispensa decorações; compreensível: o olhar é imediatamente atraído para as paredes de vidro, janelas que vão do piso ao forro, pé direito duplo em algumas partes, e descortinam a excepcional vista panorâmica de Londres do alto de mais de 30 andares.
Muitas mesas estão no centro do salão, outras junto às janelas – como a minha. Me sento em frente ao trecho onde no simples levantar dos olhos posso contemplar o Tâmisa e a Catedral de St. Paul’s.
São 6h30 da tarde, horário de verão, e o sol, bem em frente à minha mesa, ainda está forte – aliás, desmistificando outra lenda sobre Londres, de que não aparece sol aqui (e este verão particularmente tem sido muito, muito ensolarado). Uma translúcida cortina vertical aplaca os raios solares.
Desejei que a reserva do meu jantar tivesse sido feita para mais tarde, para que eu pudesse também apreciar o pôr do sol, que aconteceria em aproximadamente 3 horas. Mas o destino iria conspirar a meu favor sobre isso.
A confusão com PR
Na recepção, quando cheguei, uma menina com sotaque do leste europeu me informou que deveria vir mais alguém, o que imaginei fosse a PR, abreviatura de Public Relations, Relações Públicas, os nossos RPs.
É comum eu estar acompanhado de um PR durante almoços (em jantares é mais raro), já que a refeição, queiram ou não, é trabalho. Estamos ali para posteriormente escrever sobre o restaurante, então este profissional, eventualmente, também acompanha, prestando informações básicas sobre o lugar (mas desconfio que muitos estão ali pra conferir que você não é uma falcatrua que armou um esquema pra conseguir almoço grátis, rs).
Normalmente tenho a sorte de encontrar PRs bacanas, com quem rola todo tipo de papo, num clima bem informal; mas pode vir alguém mais sério com o qual a conversa fica bastante limitada a trabalho ou ao próprio restaurante.
Sobre esse PR, neste momento eu só sabia que se atrasava, pois já passava meia hora e nada de chegar. Eu já tinha uma garrafa de água sem gás na mesa, e resolvo aceitar o couvert que o simpático garçom me ofereceu. Chega um pãozinho com manteiga básico.
Mais uma meia hora se passa e nada do PR. Não me incomodo, pois me distraio com a vista nos diferentes ângulos, perambulando pelo restaurante. Conforme o ponto, vejo além da Tower Bridge, com os prédios da moderna região de Canary Wharf ao fundo, ou a porção mais sudoeste, da London Eye até uma área residencial sem tantos atrativos turísticos. No meio de tudo, uma clara vista do Tâmisa, seu formato serpenteado e as pontes que o atravessam.
Vou ao banheiro, e me impressiono mais um pouco. Não tanto pelo moderno piso xadrez preto e branco, mas pelo padrão das paredes de vidro que se mantêm aqui, atrás das pias e mictórios. Não é sempre que você lava as mãos ou faz xixi olhando o horizonte londrino.
Mas eis que se passa 1 hora da reserva, e acho que já é o momento de confirmar a vinda ou não da PR. Volto para a recepção e indago sobre isso. Uma outra menina, mais esperta do que a primeira que me atendeu, diz que vai verificar. Passa mais um tempo, a primeira recepcionista se desculpa, dizendo que houve um mal-entendido, e não havia ninguém para chegar. Um simpático maître italiano, bonachão como os bons italianos, também aparece, reforça as desculpas e aproveita pra me avisar que eu poderia pedir o que quisesse do cardápio.
Fico levemente incomodado com a confusão que me deixou esperando por mais de 1 hora, até por naquele momento perceber que talvez eu tivesse direito a trazer uma companhia. Por outro lado, a espera foi bem providencial – o sol em Londres estava cada vez mais baixo e agora eu teria mais chances de vê-lo se pôr.
Entrada
Durante a espera, eu já havia lido o cardápio várias vezes, que não era muito extenso, e já estava seguro sobre o que pedir.
Há seis opções de entrada, de atum com creme de abacate a frango com patê de cogumelo (média de preço £17,50, ou R$ 88; quer ter uma ideia de conversão da libra para o real, multiplique, a grosso modo, por 5 – não vou converter os valores aqui pois aprendi que em viagem “quem converte não se diverte”). A entrada mais barata era uma sopa de couve-flor (£12,50), que parece sem graça, mas tenho certeza que os chefs devem tornar o caldo interessante (até porque leva como ingredientes pistache e coentro).
Peço sem hesitar o orkeney scallops – escalopes, meu molusco favorito desde que provei essa terrivelmente deliciosa iguaria. É o prato mais caro entre as entradas (£21,50), mas escalopes realmente não são baratos, tampouco encontrados em qualquer restaurante, muito menos no Brasil – e valeria, como fui constatar logo em seguida, cada garfada.
Para o vinho, como não sou um grande conhecedor (tenho grande dificuldade de memorizar os rótulos, as safras, as bodegas e mesmo os vinhos que tomei semana passada), peço a sugestão do garçom (a essa altura já sei que é um mexicano de passaporte espanhol), que me recomenda um Verdejo, da bodega espanhola José Pariente (£9,50 o cálice, £43 a garrafa). É um branco frutado, cítrico, muito saboroso. Constatei posteriormente, em um site especializado, que tem uma excelente média de avaliação 4 (de 5) e as garrafas no mercado são encontradas por um valor acessível. Tentarei não me esquecer desse.
Os escalopes chegam sem muita demora, três unidades, levemente gratinadas, repousando sobre uma emulsão de ostras e uma fina camada de limão. Se desmancham na boca. Que delicia esse molusco, meu São Viajante!
Prato principal
O sol caia lentamente quando o mexicano vem até minha mesa e me pergunta sobre o prato principal. Há duas opções “do mar” e seis “da terra”. Fico tentado pelo filé hereford com torta cottage (£48,50, o mais caro do menu) e pelo lombo de cordeiro com alho negro (£38) mas resolvo arriscar o roasted creedy carver duck, peito de pato grelhado (£42,50). O garçom ainda me sugere como “prato de lado”, ou acompanhamento, fritas com parmesão (£6,75), talvez por que o pato, saberei em seguida, é uma porção razoavelmente pequena.
O vinho para acompanhar o prato principal desta vez eu mesmo decido. Há um St. Emilion no cardápio (£15,50 o cálice, £89 a garrafa), e sei que se houver disponível algum oriundo deste vilarejo francês, é coisa boa. Conheci essa cidadezinha do sul da França no meu primeiro mochilão, no fim dos anos 80, início dos 90. Jovem e sem grana, eu só tomava água da torneira. Mas ao chegar nessa localidade que exalava o perfume das vinícolas, tive que reunir minhas economias e investir num de seus vinhos, o que desfrutei por lá com um pedaço de queijo e uma baguete. Cara, foi inesquecível… Então eu não poderia pedir outro tinto que não um St. Emilion.
Considerando que eu queria ver o sol se pôr, e ainda haveria quase 1 hora para esse espetáculo da natureza, o prato chega muito rapidamente. Realmente não é grande, mas é muito bonito, um colorido que extravasava tons de vermelho, rosa, amarelo, laranja, verde, marrom e branco, um mosaico a encher os olhos. A carne parece suculenta, apresentada sobre um molho cor de vinho, ladeada por um croquete de batata, foie gras ou patê de fígado do pato, dois nabos, cerejas pretas e grãos de cevada, além de pétalas de flores que não sei denominar (nunca fui bom em identificar flores, só reconheço a rosa, e sempre brigava quando alguém queria incluir “flor” no jogo de stop).
Saboreio lentamente, muito lentamente, alternando entre os apetitosos ingredientes, o encorpado vinho francês e a bela vista aérea de Londres, que se avermelhava com o crepúsculo solar.
Esse seria um daqueles momentos em que o comercial do cartão de crédito diria que não tem preço (mesmo que o seu próprio cartão de crédito desminta na hora da conta). Eu endosso o criativo publicitário: ainda que saiam alguns reais da sua conta, como precificar um momento prazeroso desses?
Some a tudo isso uma boa companhia, que – desta vez não estou falando do vinho – pode ser amigo/a/s, namorado/a, marido, esposa, pai, mãe, irmã/o, filho/a/s ou simplesmente a boa companhia de você mesmo – como o meu caso nesse momento. Eu, mais o pato, o vinho, o sol e eu mesmo.
Entrego o meu prato o mais limpo possível, com a ajuda do pão (as fatias remanescentes do couvert), que apanhou os últimos rastros do consistente molho. Acredite você, mas nos meus vinte e tantos anos de idade, então morando nessa mesma Londres (que nem sonhava em ter esse prédio), trabalhei como chef de cozinha (tá, menos, menos… “cozinheiro” era mais adequado pra mim), e era muito gratificante quando retornavam o prato vazio. Tratava-se do feedback do cliente, que me dizia: “uhm, gostei”. Da mesma forma, quando voltava comida no prato, minha interpretação era o contrário. Pois eu estou dando um recado ao chef do Aqua Shard, e claramente ele iria ficar contente com a minha mensagem (eu ao menos estava).
Entre o prato principal e a sobremesa, assisto ao sol se pôr e desaparecer por de trás das suaves colinas do horizonte londrino, refletindo seus tons vermelhos sobre o rio Tâmisa que fluía a mais de 100 metros abaixo dos meus olhos.
Sobremesa
O cardápio da sobremesa tem sete opções, mas para mim quase sempre uma basta – qualquer coisa com chocolate. Sou uma criança nessa hora: adoro chocolate (principalmente se for amargo), e é muito difícil resistir à tentação e pedir outro doce. E a opção aqui não facilitava: dark chocolate hazelnut cake, um bolo de chocolate amargo com avelã (£9,50), céus.
O garçom, porém, me recomenda o British finest artesanal cheese selection (£13,50), seleção de queijos britânicos, afirmando ainda que é uma porção mais generosa. Também adoro queijos, que são servidos como uma tradicional sobremesa na Inglaterra, e como eu ainda não estava totalmente satisfeito, aceito a sugestão. E confesso, me senti um adulto ao trocar chocolate por queijo!
Para acompanhar, vinho doce. Quase vou no porto, Quinta do Castro (£7), mas resolvo experimentar algo diferente, um Ice wine, Vidal, do Canadá (£14), e não me arrependo.
Se o prato principal não era muito grande, os queijos serviriam facilmente duas pessoas. Chegam numa bandeja com três pedaços diferentes: Yarg, um queijo típico britânico, leve e cremoso; St. Jude, nem muito leve nem tão pesado; e Beenleigh Blue, mais robusto, acompanhados de fatias de pão integral com castanhas, manteiga, marmelada (para improvisar um sempre bem-vindo “romeu com julieta”), chutney (um molhinho de frutas picante), aipo e um cacho de uvas. Só posso dizer que realmente fiquei muito feliz por ter abdicado do chocolate.
A sobremesa era realmente generosa, agora sim me sinto completamente satisfeito (em ambos os sentidos) ao finalizá-la (o que novamente fiz demonstrando todo meu apreço ao chef), quando o anoitecer começa a cair sobre Londres.
Por fim, aceito uma xícara de chá como forma de prolongar ainda mais esse prazeroso momento.
Estando há mais de quatro horas no restaurante, eu já me encontrava íntimo dos garçons, especialmente dos jovens mexicano e de um outro italiano, que me revelaram estar em busca de boas oportunidades na capital britânica.
E assim, após uma sequência de pratos deliciosos, após apreciar Londres como um pássaro, contemplar do sol nas altitudes à noite profunda, passando pelo espetacular pôr do sol, após vários momentos de interação com os garçons, com o meu bloco de notas (eu ainda era um travel writer trabalhando), com a câmera fotográfica (sempre trabalhando) e comigo mesmo (sorte que eu sou uma boa companhia), concluo que já posso ir embora.
O restaurante está na penumbra – a fim de valorizar a noite londrina que se exibe nas janelas – e me levanto para partir, não sem antes me despedir dos garçons e dar um abraço no maître italiano que tão bem me recebeu e volta e meia chegava na minha mesa para saber se estava tudo bem. Vislumbro no lado oposto ao meu as luzes da Tower Bridge totalmente iluminadas.
Pudera, já são 11 horas da noite. Sério? Nem percebi.
Comentários finais
- O restaurante: Aqua Shard
- Onde: Londres
- Endereço: The Shard, 31 St, Thomas Street, andar 31
- Estação de metrô: London Bridge
- Reserva: +44 0 2030.111256 ou online
Avaliação final: O restaurante vale muito a pena. Não é barato, mas tem uma cozinha diferenciada, culinária britânica contemporânea com um toque mediterrâneo, mérito do experiente chef Dale Osborne – e ainda conta com o enorme bônus da vista panorâmica do 31º andar. Eu teria pago, entre meus pratos e vinhos, £117,50 (sem contar o serviço), mas você pode pedir pratos mais baratos, incluindo uma entrada, um vegetariano de prato principal e um cálice de vinho, por £49, e quem sabe mais £6,75 se pedir a sobremesa dos queijos e for dividir entre dois (fora o serviço). Só a entrada para subir no The Shard (que não é paga para quem vai ao restaurante) custa £30,95 comprada na hora (ou dez libras a menos se adquirida com antecedência). Então realmente vale pagar um pouco mais para apreciar não apenas a vista de Londres, mas também uma refinada gastronomia britânica.