Por Shaula Chuery
Escrever sobre a Rússia não é uma tarefa fácil. Tanto pelo o que vivi nesse país como pelo o que a própria Rússia representa.
Primeiro, por ser a gigantesca terra de Lenin, Trotsky e tantos outros. Terra que vivenciou uma das mais importantes revoluções da Era Moderna, pois mesmo aqueles que torcem o nariz para a URSS têm a obrigação de reconhecer a grandiosidade do que foi a Revolução Russa. Independentemente do quanto a URSS (sob a batuta de Stalin) se distanciou dos sonhos revolucionários, a transformação social que ocorreu na Rússia não pode ser ignorada: coletivização da terra, industrialização, educação e saúde universais, igualdade de direitos entre gêneros e instituição de políticas públicas voltadas às mulheres.
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Em segundo lugar, sempre tive uma queda pelos escritores russos: Tchekhov, Gogol, Turguêniev, Dostóievski, Tolstoi. Ao lê-los, o caráter e personalidade dos russos me intrigavam e, pode ser loucura, mas sempre vi uma certa similaridade conosco, brasileiros. Com as devidas diferenças históricas e sociais, consigo ver algo em comum entre os vícios e paixões dos personagens russos e os clássicos personagens brasileiros (Brás Cubas e suas memórias, o ganancioso dono do Cortiço João Romão, os olhos de cigana oblíqua e dissimulada de Capitu ou as decisões de Anna Karenina).
Por isso, conhecer esse país sempre foi um objetivo pessoal – meio que relegado a um segundo plano, mas ainda assim um objetivo.
Frios?
Antes de ir para a Rússia, tanto meus amigos brasileiros quanto europeus me perguntavam o que uma garota de 27 anos viajando sozinha iria fazer lá e sempre me alertavam que os russos eram frios, antipáticos, violentos e que ninguém falava inglês. A afirmação mais correta é a última, pois a maioria não fala nada além da língua materna.
Na minha primeira vez no Kremlin fui ao posto de informações tirar algumas dúvidas sobre os ingressos. Questionei a funcionária em inglês, ela me disse um monte de coisa em russo e me entregou um folheto. E é mais ou menos sempre assim. Talvez tenha sido azar o meu, ela estava de mau humor ou o que seja, enfim…
Quando falamos com alguém nas ruas, eles respondem em russo, então fazemos aquela cara de interrogação e eles começam a repetir a mesma coisa, mas gritando, como se, automaticamente, fôssemos capazes de compreender russo quando eles falam mais alto. O único efeito real era me deixar nervosa, fazendo com que esquecesse até as poucas frases que tinha aprendido na língua local.
Portanto, esse é sim um tipo de comportamento comum de se encontrar no cotidiano. Por outro lado, após passar um tempo com os russos, percebe-se que esses podem se mostrar receptivos, generosos, gentis.
Como quando, depois de ficar 1 hora na fila para entrar no Mausoleu de Lenin, ao abrir a mochila e passar pelo detector de metais, o soldado me cumprimenta em inglês e me pergunta de onde sou. Digo que sou do Brasil e segue o seguinte diálogo:
- Brasileira? - Sim. - Ronaldo! Futebol! Olimpíadas agora?!?! (Nessa ordem e nessa entonação) - (risos) Sim... Ronaldo!!! - Que legal!!! Bem-vinda!!!
Ou logo quando cheguei no aeroporto. Saquei dinheiro e fui para o ponto de ônibus. Ao entrar no coletivo, o motorista não aceitou que eu pagasse a passagem porque eu só tinha uma nota alta.
Um cara atrás de mim entendeu o que estava acontecendo e decidiu pagar minha passagem. DO NADA!!! Durante todo o caminho fomos conversando. Ele em russo e eu em inglês. Ele disse que me ajudaria no metrô também, pois iria fazer o mesmo caminho. Descemos e fomos todo o caminho até o hostel juntos. Chegando lá, pedi para a recepcionista perguntar o porquê ele havia feito isso, e a resposta foi que não lhe custaria nada me ajudar.
Eu ia ficar no sistema de troca de trabalho por hospedagem e o gerente do hostel havia dito que me buscaria no aeroporto, o que não aconteceu, mas ao chegar logo me mostraram o lugar e fizeram com que me sentisse bem-vinda. Pouco depois chegou o gerente que pediu desculpas por não ter ido me buscar no aeroporto e me deu um buque de flores.
E essa foi minha recepção pela “gelada” Moscou.
Atrações
A cidade em si é linda, com parques enormes e uma bela arquitetura. No primeiro dia, em pé na Red Square, eu olhava para o Kremlin, para a Basílica de São Basílio e para o Mausoléu de Lenin sem acreditar que estava ali. Acho que foi a mesma reação que tive ao ver o Big Ben pela primeira vez. São aqueles lugares chaves da existência, que povoam nossos sonhos, mas parecem irreais quando vistos pessoalmente…
Por estar trabalhando em um hostel, fui repetidamente em vários lugares turísticos. Visitei tantas vezes o Mausoléu de Lenin que, quando eu chegava, era como se o líder soviético me perguntasse como eu tinha passado a noite e se aceitava um cafezinho. E sim, é surreal ver o corpo do maior líder soviético parecendo um pequeno boneco de cera.
O Kremlin é um conjunto de museus e igrejas ortodoxas rodeado de belos jardins. Dentro também fica o Armoury, uma coleção de artefatos e relíquias russas, como armaduras, carruagens, jóias, mobiliário, roupas do clero e da realeza e coroas. É no Armoury que estão os famosos Easter Eggs de Fabergé, ovos de cerâmica que possuem delicadeza impressionante.
Metrô
O metrô de Moscou merece um capítulo à parte. Tudo é grandioso, da arquitetura aos mosaicos e esculturas. Entenda que a malha metroviária foi construída durante o regime soviético – por trabalhadores e para trabalhadores. No todo, é uma homenagem ao operariado, aos camponeses e aos artistas que moldaram a nação. É possível ficar dias parando de estação em estação, vendo as pessoas atravessarem obras de arte à caminho de casa ou do trabalho, tão habituadas aos seus arcos e passagens que não reparam mais em nada, enquanto nós, tolos turistas, nos maravilhamos com uma obra tão humana.
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Orgulho e arte
Os russos são, de forma geral, muito orgulhosos de sua história e de suas conquistas. Isso é visível nas centenas de monumentos espalhados por Moscou e no simbolismo de sua arquitetura.
Uma prova disso é o Cosmonautic Museum, uma ode às conquistas espaciais. Nele é possível acompanhar a evolução da tecnologia soviética que foi tão desafiante para os arqui-inimigos ianques. Esse museu fica em frente ao VDNKh Park, um centro de convenções onde há um pavilhão para cada uma das nações que compunham a URSS e a famosa Fonte da Amizade dos Povos. Nos finais de semana do verão, o parque fica lotado e sempre oferece algum show ou evento.
Uma das minhas maiores surpresas, porém, foi conhecer as Tretyakov Galleries. Tretyakov foi um rico colecionador de arte russa que acreditava que a arte deveria ser compartilhada com quem tem direito, o povo russo. Ele então comprou uma imensa propriedade, alocou toda a sua coleção e abriu as portas. Quando estourou a Revolução, a Galeria foi incorporada pelo governo, que continuou a acrescentar novas aquisições. Hoje a coleção é dividida entre Tretyakov Gallery, onde estão obras do século XII ao início do século XX, e a Tretyakov Modern Art, que abrange o século XX e a arte contemporânea.
Quando vamos a galerias de arte ao redor do mundo, há um evidente eurocentrismo ocidental em todas as coleções e quase não vemos obras que fujam disso (o que é um enorme desperdício, diga-se de passagem). A arte russa não deixa nada a desejar aos mais importantes pintores e escultores mundiais. É possível ver a influência dos movimentos artísticos ocidentais em obras que são essencialmente russas, transbordantes de suas particularidades. Na Tretyakov Modern Art é fascinante ver a mudança de estilos que acompanham o passar dos anos e suas alterações histórico-sociais, de um começo de século XX influenciado pelas escolas centro-europeias, para o extremo realismo soviético e a posterior ruptura com o enfraquecimento do regime. Para todo e qualquer sociólogo que como eu acredita que a arte é uma manifestação das estruturas sociais, é um deleite acompanhar essa linha do tempo em forma de quadros e esculturas.
Enfim, eu morei um mês em Moscou e não suficiente para ver e viver metade do que essa icônica cidade merece.
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